quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

A vida não cabe em um feed

Era uma manhã como tantas outras quando Sofia percebeu que havia passado três horas seguidas rolando a tela do celular sem propósito algum. As notificações piscavam incessantemente: likes no Instagram, mensagens não lidas no WhatsApp, atualizações do LinkedIn cobrando mais uma conquista profissional. Seu café, agora frio na xícara, era testemunha silenciosa de mais uma manhã perdida no abismo digital.

Sofia trabalhava como analista de dados em uma startup promissora. Seu computador estava sempre aberto em múltiplas telas: planilhas, relatórios e um chat corporativo que nunca silenciava. A nova inteligência artificial da empresa prometia automatizar grande parte de seu trabalho – uma "revolução", segundo seu chefe. Mas a palavra "revolução" só aumentava sua insônia. Quantos como ela seriam "otimizados" para fora de seus empregos?

No intervalo do almoço, deslizou pelos dedos seu feed de notícias. "Novo vazamento de dados expõe informações de milhões", dizia uma manchete. Ao lado, uma propaganda personalizada oferecia exatamente o modelo de tênis que ela havia pesquisado na noite anterior. A coincidência digital já não a assustava mais – era apenas mais um lembrete de que sua privacidade há muito havia se tornado moeda de troca.

Seu armário transbordava de roupas com etiqueta, compradas em momentos de ansiedade durante madrugadas insones. O último relatório sobre mudanças climáticas que leu fazia seu consumismo parecer ainda mais pesado. "Fast fashion é uma das indústrias mais poluentes", lembrou-se, enquanto uma notificação anunciava uma nova liquidação imperdível.

No grupo da família, sua tia compartilhava mais uma notícia alarmante sobre vacinas. Sofia suspirou, lembrando-se das intermináveis discussões no último almoço de domingo, quando tentou explicar sobre checagem de fontes e desinformação. A verdade havia se tornado um conceito fluido, moldável conforme as bolhas digitais de cada um.
 
Seu relógio smart vibrou: "Você ainda não atingiu sua meta de passos hoje". A pressão por produtividade havia se infiltrado até mesmo em seu exercício físico. Nas redes sociais, influenciadores vendiam cursos sobre como otimizar cada segundo do dia. Dormir virou luxo, descansar virou preguiça, e existir se transformou em uma eterna competição por métricas.

À noite, entre um deslize e outro no aplicativo de relacionamento, Sofia se pegou pensando em como o amor havia se transformado em um catálogo digital. Perfis cuidadosamente curados, biografias otimizadas para algoritmos, e conexões que se desfaziam na mesma velocidade que se formavam. Seu último relacionamento terminou por WhatsApp – três meses de história resumidos em um emoji de coração partido.

Em sua mesa de trabalho, um post-it amarelado lembrava: "Reunião sobre trabalho remoto". A pandemia havia revolucionado os escritórios, e agora sua empresa discutia a possibilidade de se tornar completamente virtual. Liberdade ou isolamento? A linha entre casa e trabalho já não existia mais – seu quarto era seu escritório, sua sala era sua academia, e sua cozinha virou cenário para videoconferências.
 
Antes de dormir, Sofia se pegou editando uma foto do pôr do sol que havia tirado. Filtro, contraste, saturação – a busca pela imagem perfeita para seu feed. Quantas camadas de edição separavam a realidade da sua versão digital? Em suas redes sociais, sua vida parecia perfeitamente curada, cada momento cuidadosamente selecionado e editado. Mas por que aquela sensação de vazio não passava?
 
No espelho, longe das telas e filtros, Sofia encontrou seu reflexo verdadeiro. Olheiras de noites mal dormidas, marcas de expressão de preocupações reais, um sorriso genuíno ao receber uma mensagem de sua melhor amiga. Talvez a verdadeira revolução estivesse em redescobrir a autenticidade em um mundo que valoriza tanto as aparências. Deixou o celular no modo avião – hoje, decretou, seria um dia analógico.

A crônica da modernidade se escreve diariamente em gigabytes de informação, stories efêmeros e conexões virtuais. Entre teclas e telas, ainda somos humanos buscando significado, tentando equilibrar o progresso com nossa essência mais básica: a necessidade de conexões reais, de tempo para respirar, de espaço para simplesmente ser.

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